23.9.19

A Cruel God Reigns | O Peso do Abuso e do Silêncio

Década de 1970. Conhecido como ano 24 da era Showa pelo Japão, essa década foi marcada por vários eventos importantes no mundo da música, do cinema, e claro, dos mangás. Um grupo de mulheres, conhecidas justamente como "grupo do ano vinte e quatro" ou "fourty-niners", trouxeram, dentro da demografia "shojo", histórias revolucionárias, que discutiam feminismo, sexualidade e temas mais pesados, como abusos e depressão, de modo nunca antes retratado por mangás. Dentre essas mulheres, a senhora Hagio Moto merece destaque. Essa autora, que ficou famosa em 1974 por Thomas no Shinzou (em outro momento falo sobre), em 1992, por intermédio da Petit Flower, começa a publicar uma das histórias mais ácidas e indigestas que lembro de ter lido. Não sendo recomendada para quem possui gatilho com abuso doméstico, estupro e depressão, Zankoku na Kami ga Shihai Suru (Um Deus Cruel Reina no Céu) trata-se de uma história fascinante, que comove, entristece e choca, seja por sua imersividade, seja pela dura realidade que retrata. Tendo dito, vamos lá ao post.

SINOPSE
1960, Boston. Jeremy Butler é um jovem que mora sozinho com sua mãe, uma viúva que não se adaptou à vida sem seu marido e tenta tocar a vida como pode, tendo por pilar emocional seu filho, com quem nutre um bom relacionamento. Quando o rico Greg Lowland começa a sair com sua mãe e mostrar intenções românticas por ela, Jeremy apoia o relacionamento, e quando percebe quais as verdadeiras intenções do homem, ele passa a provar das experiências mais dolorosas ao tornar-se uma silenciada vítima de abuso sexual.
FALANDO SOBRE (SEM SPOILER)

Acompanhar a história de Jeremy é uma via-crucis, dependendo do seu nível de imersão no mangá. Assistimos como cúmplices um jovem sadio, extrovertido e enérgico tornar-se perturbado, sufocado pelos próprios temores, sem ninguém que o ouça. Sua mãe, mulher marcada por uma grave experiência com depressão, tornou-se frágil e emocionalmente instável, sendo incapaz de lidar com tamanho choque, mesmo porque, ela acaba apaixonando-se verdadeiramente por Greg, sem ter ideia do monstro que esse homem é.

Quando ocorre o casamento de Greg e Sandra, mãe do protagonista, os dois vão morar junto com o rico homem, e é ali, naquela casa, onde a maior parte do enredo se passa. Falando em partes, sem revelar muito, podemos dizer que a história é dividida em dois momentos: causas e consequências. No momento das causas, teremos a abordagem da violência sexual sofrida por Jeremy, bem gráfica em alguns momentos, além do acompanhamento psicológico dele, e suas tentativas de contornar as situações problemáticas que vão surgindo. Aqui, também teremos a apresentação de alguns personagens importantes, como a empregada da mansão e Ian, meio-irmão de Jeremy e filho de Greg, um playboy padrãozinho sem muita importância, à princípio. A casa oculta muitas histórias cabulosas, e conforme a situação de Jeremy vai se agravando, a sensação de impotência toma conta do leitor. Você é tomado por cansaço e desgaste, já que é complicado apenas assistir a vítima sofrendo, e existem momentos em que você se questiona "Mas afinal, porquê ele não faz nada para se defender?!". Medo, é a resposta. Medo do que pode acontecer caso ele diga que foi violentado por outro cara, medo do que ele pode fazer consigo e com a mãe, medo do que o choque da verdade pode provocar à Sandra, mas acima de tudo, medo de que não acreditem nele.

Um ponto de destaque dessa trama, antes de prosseguir no aspecto do enredo, é a arte. Ela tem todo um toque naturalista, relacionando a natureza e as árvores ao Jeremy, os espinhos ao Greg, as rosas à Sandra e galhos e arbustos ao Ian. A expressividade dos personagens de Hagio Moto é outro destaque, uma vez que ela consegue fazer seus desenhos transmitirem muito bem emoções, em especial no que diz respeito à dor e à raiva. Ah, e antes que vocês sejam pegos de surpresa, preciso avisar que as capas de cada volume dão bastantes spoilers sobre o seguimento da história, então cuidado quando forem pesquisar imagens do mangá!

A segunda parte vêm através de um acontecimento que só pode ser definido como "soco no estômago", alternando entre o ponto de vista de dois personagens que, adivinhem, não posso dizer, é spoiler. Trata-se de um momento do plot que muitas pessoas não gostam, e eu mesma passei muito tempo achando uma parte ruim do mangá, mas ela tem sua função. É uma situação bem incomum? Sem dúvida, mesmo na vida real eu não lembro de nada do tipo, mas por mais estranho que pareça, é possível aquilo ali, ainda mais partindo das reflexões anteriormente desenvolvidas. Para quem quiser ler e descobrir, afinal de contas, do que raios eu estou falando, A Cruel God Reigns infelizmente está disponível apenas em inglês e sob o formato de Comic Book Zip, o qual necessita de um programa ou um aplicativo específico para ser lido. Vai dar um gosto ruim na boca sem dúvida depois que você terminar, mas a intenção da autora foi essa mesma, cutucar a ferida e nos fazer cúmplices desse ato cruel e vil que é o estupro.



Vou ficando por aqui, agradeço a todes que leram até aqui. Pretendo trazer mais histórias do grupo do ano 24, tive experiência com a maioria das autoras desse movimento, então, se for do interesse dos leitores, posso escrever mais sobre. Então é isso, até a próxima e levem consigo a mensagem importante que essa história traz sobre o quão importante é estar alerta sobre abusos e o quanto vítimas desse tipo de crime precisam de apoio psicológico e emocional.


Places, places, get in your places 
Throw on your dress and put on your doll faces 
Everyone thinks that we're perfect 
Please don't let them look through the curtains 

Picture, picture, smile for the picture 
Pose with your brother, won't you be a good sister? 
Everyone thinks that we're perfect 
Please don't let them look through the curtains 

D-O-L-L-H-O-U-S-E 
I see things that nobody else sees...

- Dollhouse, Melanie Martinez

2 comentários:

  1. Oi Lives <3
    Nossa, eu amei a proposta desse mangá. Me fez pensar em títulos tipo Vitamin e Helter Skelter, que chegaram até a vir pro Brasil, e que deixam muito esse gosto amargo na boca - Helter Skelter mais do que Vitamin, pq o mangá não tem um encerramento claro e você tem que só aceitar que existe gente ruim no mundo e diferentemente das novelas, nem sempre elas pagam pelo que fazem.
    Não sei se dou conta emocionalmente de ler esse título agora, mas amei a dica. Gostei tb da sua resenha e do contexto de quando o título foi publicado, bem importante!
    Beijinhos <3

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    1. Shana do céu, eu ia esperar pra responder todos os comentários atrasados bem bonitinho, mas mulher do céu, eu tenho um post de helter skelter já escrito ahsuabauavshshsyshshs vou lançar ele logo, preferi nem falar muito do final porque, pra ser honesta, até hoje eu estou tentando entender direito aquele final, não sei identificar a função daquilo no meio do resto do enredo, sei lá, achei meio deslocado (talvez eu e meu alter-ego sádico estivéssemos esperando uma tragédia bem angst no final? talvez).

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