10.7.20

23 | Carta Para Alguém da Tua Infância


A primeira paixonite. As professoras que foram importantes para minha formação de caráter. A única amiga que não me odiava. Eu poderia escrever para qualquer uma dessas pessoas, mas nenhuma delas me marcou como vocês dois, à quem vou endereçar essas cartas. Sintam-se honrados de, mais de sete anos depois, não terem sido obliterados das minhas memórias. Vocês não merecem isso. Eu não mereço isso.

Querido A.

Na minha infância, eu tinha muito medo de chegar perto dos garotos, de me enturmar com eles. Pensava que, se as meninas me achavam feia, errada, estranha, quem dirá os meninos. À exceção somente de V., que achava minha voz bonita (não sei se onde ele tirou isso), todo o resto parecia extremamente alheio à mim - o que, tendo em vista as meninas da turma, era uma glória. Mas você, diferente de todo o restante, sempre gostou de me encher o saco. Eu nunca gostei da Mônica, mas ser chamada de dentuça, baixinha e gorducha por você me fez detestá-la. Pobrezinha, é só um 2D, não deveria receber sentimentos ruins da minha parte. Além do mais, éramos todos crianças - mas eu nunca te enxerguei como "só uma criança". Todos os dias, quando eu chegava na escola, sentia meus pesadelos tomarem forma em você. Tudo de ruim que via em mim, desde meu jeito desengonçado, a vergonha que eu tinha do meu corpo, tudo isso tinha você como cerne. Todas as vezes que nos víamos, você fazia questão de lembrar que era uma monstrenga, uma baleira, uma rolha de poço. Sabe quanta inveja eu tinha quando olhava para as meninas magrinhas, de dedos longos, unhas bem feitas e que ficavam bem mesmo usando um saco de batatas? Ou melhor, sabe a sensação de se olhar no espelho e odiar tudo o que vê? Eu vou descrever pra você como é. Imagine ver você no espelho, olhar-se de cima abaixo, e no lugar de se enxergar, ver gordura, feiura, imperfeição, alguém que ninguém vai colocar os olhos se não for para debochar. Eu não tinha coragem de confrontar você, era covarde o suficiente pra engolir tudo calada. Eu lembro do dia que eu explodi. O dia do Toddynho, lembra? Você jogou aquela porcaria no meu cabelo. Eu me escondi na sala e fui chorar. Depois, veio se defender dizendo que foi um acidente. Que seja, ainda assim você só tinha um trabalho: pedir desculpas. Nem isso você fez. Eu estava no limite do meu ódio no dia em que joguei você e o nossa próxima endereçada na rodinha, e sabe quanto tempo eu levei pra me recuperar disso? Dessa inferioridade que só existia na minha cabeça? Desse sentimento de que ninguém nunca iria gostar de mim pelo que eu sou? Durou muito tempo. Um dia, isso acabou. À você só não reservo mais desprezo por saber a situação complicada que você e sua família vivem, hoje em dia. Minha mãe também convive com diabetes, e só por saber das problemáticas que envolvem esse tipo de vivência que economizo minha raiva para com você. E também porque não quero apontar seus problemas de saúde como karma ou coisa do tipo - simplesmente não parece justo fazê-lo.

Mas não fique feliz. Ainda te detesto por cada apelido cunhado e pelos anos em que convivi com a sala repetindo-os.

Espero que tenha se tornado uma pessoa melhor. Meninos não serão só meninos pra sempre.

L.

Querida M.

Eu gostaria de imprimir um tom mais agressivo na sua carta do que aquele que pus na carta de A., mas isso não condiz com meus princípios. Se mantive minha educação na carta dele, vou manter na sua também. Estou controlando meus dedos para não resumir esse texto à palavrões e xingamentos do mais baixo escalão - e acho bom você saber disso, só pra sentir o nível. Eu tenho muitas perguntas que gostaria de fazer à você, mas a primeira da fila é: qual o teu problema? Quer dizer, eu nunca entendi o motivo das meninas serem tão ariscas comigo, mas você principalmente - pois você foi a que mais me irritou, me apurrinhou, me tratou mal e me pôs em situações bem chatinhas. Qual é, eu era a última das últimas! O que tinha de tão especial em mim? Sim, eu quero saber porque você me empurrou do batente e me fez cair de cara no chão. Eu quero saber porque você fazia questão de destacar cada mínimo erro meu. Eu quero saber pra que os anos que passei engolindo suas palavras, afiadas feito facas, façam um mínimo de sentido.

E honestamente, querida: é muita falta de noção da sua parte chegar pra mim, anos depois, na maior cara de pau, e perguntar se eu me lembro dos bons tempos de ensino fundamental. Mulher. Cidadã. Criatura. De. Deus. Bons tempos de onde? A amnésia bateu forte, desculpa. Olha, eu tinha até esquecido que você existia, mas como sempre, a sua pessoinha dá um jeito de atrapalhar minha paz. Se você queria, por algum acaso, um contato mais amigável comigo, deixa eu te contar duas coisas: 1) Amizade comigo você não tem de novo nem aqui nem no inferno; 2) Belíssimo jeito de começar, viu?

Bem, assim sendo, eu gostaria de despejar minhas palavras aqui e esquecê-las junto com você. Vou terminar essa carta lhe desejando nada, nem bom nem mau. Desejos são preciosos demais pra gastar com gente feito você.

Se vire pra adivinhar quem escreveu isso. Sua esperteza deve lhe ajudar.

3 comentários:

  1. Acho que a infância é um dos períodos mais difíceis para nós, pessoas que vivem no planeta Terra. Antes eu pensava ser a transição para a adolescência mas sabe, se algo não vai bem na infância isso pode muito bem ser levado para a próxima fase da vida e daí em diante. Não fico nem um pouco feliz em ler suas cartas Lives, na verdade eu consegui senti-las de um jeito estranho, mas tenho certeza que só de escreve-las já deve ter sido algo muito benéfico para você. Ao menos eu espero que tenha sido pois honestamente, tentar entender a motivação de pessoas que agem assim é o mesmo que tentar entender a si mesmo. É um grande labirinto, é querer praticar a empatia num outro nível e acho que não seja algo realmente bom - afinal nem todo mundo tem uma cabeça boa - mais nos vale cuidar da gente, do que dos outros.

    Mas talvez o mais difícil seja superar a dor que essas pessoas causam, ou se isso realmente é algo a ser superado. Perdoar a si mesmo e aos outros, estou pensando em algumas coisas importantes que me aconteceram nos períodos escolares.

    Estava aqui matutando se respondia seus comentários agora ou deixava para uma outra oportunidade, e optei pela última pois nesse clima não dá para deixar uns surtinhos cheios de exclamação.

    Beijos, Snow!

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  2. A última frase da primeira carta foi uma referência à música da Dua Lipa? Ou eu brisei? Muito bem colocada a frase, anyway.

    Li suas cartas e, a princípio, achei bem terapêutico poder despejar essa raiva toda em forma de palavras e deixar pra trás.
    Mas também lembrei da Ivete dizendo: "gostei, gostei da delicadeza!" - e foi genial. Não sei se posso rir do seu desabafo, mas queria poder rir desse tapa na cara. Espero que os destinatários tenham recebido o tapa simbólico, porque parece que eles merecem bastante.

    Espero também que o desabafo te ajude a passar por cima disso e se sentir mais à vontade consigo mesma, se gostar mais, e colocar as pessoas babacas em seu devido lugar quando passarem dos limites. Que sirva ao menos de aprendizado pra saber de quais pessoas se manter longe :)

    Respondendo seus comments: eu sou muito cuidadosa com minhas coisas e elas tendem a durar, mas os sistemas operacionais ficam obsoletos tão rápido que mesmo assim, as coisas acabam morrendo cedo demais :< O negócio é fazer uma constante poupancinha pra ter dinheirinhos quando precisar trocar de aparelho!

    Menine, eu fico horrorizadas com adolescentes virando a noite estudando. Só fui ter esse desprazer na faculdade e não recomendo pra ninguém.
    E por fim: sim, BTS/SUGA estão no meu top. Mas ainda assim todos da minha playlist são artistas que adoro muito e ouço sempre, então tá valendo, hahahaha!
    Beijinhooos :*

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  3. Oiee Lives, minha estrelinha ♥

    Diz o estudo que humano é aquele que tem facilidade de guardar traumas, principalmente na infância que é uma fase muito delicada. Mas independente disso, que lembranças dolorosas e horríveis que passou na sua adolescência, deve ter sido muito difícil na época para superar tudo isso... Até hoje eu não consigo entender os praticantes de bullying (nem quero entender) de qual necessidade de rebaixar outras para sentir superior, ainda mais na fase muito importante para todos nos (até pra eles) , parece que esse tipo de praga tem em qualquer lugar, não acha? Espero que tenha pago da mesma moeda, pois eu acredito muito da lei do retorno que esses sempre os que se ferram nos futuros.

    p.s.: agora fiquei curiosa de saber da sua amiga e das professoras, que tal escrever sobre elas tbm?

    Rule of rose, nunca joguei mas só sei que é um jogo perturbador, mas trilha sonora dela é bem bacana de ouvir ♥

    Kiss
    Tsuki no shtia

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